quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O Pequeno Rapaz e o Homem Gordo

Daniel Medeiros (divulgação


Em agosto de 1939, uma carta assinada pelo físico Albert Einstein alertava ao presidente americano Franklin Roosevelt sobre a possibilidade de a Alemanha nazista desenvolver um artefato a partir da fissão nuclear. Einstein considerava "seu dever" sugerir ao presidente norte-americano uma maior atenção às pesquisas sobre urânio e, principalmente, mais (muito mais) investimentos. Em outubro, o presidente respondeu a carta e afirmou que iniciaria imediatamente os estudos de viabilidade para atender ao pedido e ao alerta do grande físico alemão, exilado desde os anos 30 nos EUA.

Entre 1942 e 1945, mais de 25 bilhões de dólares (em valores atuais) foram gastos para construir três bombas atômicas, mobilizando um complexo de universidades, centros de pesquisa e áreas militares, além de centenas de especialistas, como o italiano Enrico Fermi e o judeu americano J. Robert Oppenheimer. Curiosamente, a participação direta de Einstein no projeto foi vetada pelo FBI, por causa de suas ideias simpatizantes ao anarquismo e ao socialismo. Apesar disso, graças aos intelectuais americanos e europeus - e o gigantesco esforço logístico, financeiro e de engenharia dos EUA - unidos em torno da defesa do mundo livre, a possibilidade de a Alemanha dispor de um artefato nuclear seria contida pelas armas desenvolvidas por eles.

O que os intelectuais envolvidos no chamado Projeto Manhattan não esperavam - ou imaginavam - é que, afinal, a Alemanha não desenvolveu a bomba e o governo americano resolveu lançar as suas sobre Hiroshima e Nagasaki, três meses depois de a Alemanha ter assinado a rendição na Europa. Hitler, o líder do nefasto regime que vitimou seis milhões de judeus, havia se matado no dia 30 de abril. O perigo, para o qual a bomba devia sua razão de ser pelos cientistas e intelectuais do calibre de Albert Einstein, não existia mais.

Porém, a bomba existia. A primeira foi detonada no deserto do Novo México, em julho de 1945. Uma explosão equivalente a vinte mil toneladas de dinamite. Sucesso! As outras duas, artefatos de cerca de três metros e mais de quatro toneladas cada uma - uma de urânio, outra de plutônio - embarcaram em um B-29 e foram jogadas no dia 6 e 9 de agosto, matando cerca de 120 mil japoneses. No dia 14, o Japão se rendia. Acabava a guerra no Pacífico.

Até hoje, 70 anos depois, uma pergunta ainda incomoda: e se Einstein não tivesse escrito aquela carta? E se a ideia de que era preciso os EUA investirem em armamentos nucleares não tivessem sido aventada? O que teria acontecido? Como afirmam os defensores da medida tomada pelo governo Truman - que assumiu em 12 de abril, por causa da morte do presidente Roosevelt -, se os EUA não lançassem a bomba, as vítimas da guerra com o Japão seriam ainda em maior número. Será?

Como sabemos, as bombas de 1945 deram início a uma corrida nuclear que consumiu trilhões de dólares, recursos que poderiam ter resolvido de forma permanente questões prementes da humanidade, como a fome na África, ou a moradia e a educação em amplas regiões do planeta. Mas, em vez disso, o que há é a ameaça diária que paira sobre nossas cabeças. Milhares de ogivas nucleares estão espalhadas pelo mundo, capazes de exterminar a vida na Terra muitas vezes. No leste europeu, com a desagregação da União Soviética, ninguém sabe exatamente o nível de controle e cuidado com os depósitos nucleares. Outros países produziram a bomba. Alguns têm e dizem não ter. Alguns ainda alimentam a intenção. Ninguém está a salvo.

No texto "Fé e Saber", o pensador alemão Jurgen Habermas afirma que a ciência precisa ter a humildade de pensar sua ação e os efeitos sociais (e morais) de suas pesquisas. Hoje - a isso se refere o pensador alemão - o grande "fantasma" da Ciência é a engenharia genética. Os seus apoiadores lembram dos avanços na medicina. Habermas discute as implicações éticas de controlar a "criação" de espécies.

Que o exemplo das bombas atômicas, chamadas de Little Boy e Fat Man, possa ser a lembrança presente para os "avanços" da Ciência e recordem, principalmente para os intelectuais, que suas ações têm sim consequências e que estas consequências podem ser nefastas, sombrias. A neutralidade é um mito e a "Ciência pela Ciência", uma falácia que beira à má-fé. Há sempre limites humanitários, éticos, morais às ações dos cientistas. Que o diga a empresa alemã IG Farben, criadora do pesticida inodoro Zyklon B, usado nas câmaras de gás, vitimando milhões de judeus nos campos de concentração de toda a Europa. É certo que foi criado para matar insetos. Mas foi produzido em larga escala para matar gente.

Hannah Arendt, filósofa alemã radicada nos EUA (assim como Einstein) referindo-se ao nazista Adolf Eichmann, o executor do complexo trabalho de levar milhões de judeus para os campos de concentração, comparou-o a um funcionário incapaz de pensar por si mesmo e que via a excelência como a tradução da obediência. Obedecer sem questionar: "Eichmann era um homem que não parava para refletir. Ele não tinha perplexidades e nem perguntas, apenas atuava, obedecia. Seu desejo [era] de agir corretamente, de ser um funcionário eficiente, de ser aceito e reconhecido dentro da hierarquia" (in: SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. In: Extensão. Belo Horizonte. V.8. nº26, p.53

E se os cientistas dessa época tivessem se recusado? E se os de hoje não aceitassem nunca usar a Ciência para a criação de armas ou qualquer outro artefato que possa ser usado para ferir, matar? E se negassem, ao menor sinal de uso inapropriado, emprestar sua inteligência para produzir ou dar continuidade a qualquer coisa que coloque em risco outras pessoas?

Nos 70 anos do "pequeno rapaz" e do "homem gordo" e da memória da sombra de poeira nuclear que se transformaram cento e vinte mil pessoas, por que não apostar nessa utopia?




* Daniel Medeiros é professor de História no Curso Positivo.

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